4.26.2005

O PRINCÍPIO

"Naquela noite Lídia sonhou com o mar. Era um mar profundo e transparente e estava cheio de umas criaturas lentas, que pareciam feitas da mesma luz melancólica que há nos crepúsculos. Lídia não sabia onde estava, mas sabia que aquilo eram alforrecas. Enquanto acordava ainda as distinguiu atravessando as paredes e foi então que se lembrou da avó, Dona Josephine do Carmo Ferreira, aliás Nga Fina Diá Makulussu, famosa intérprete de sonhos. Segundo a velha, sonhar com o mar era sonhar com a morte.
Abriu os olhos e viu o grande relógio de pêndulo preso à parede. Passavam vinte minutos da meia-noite.Angola já era independente. Pensou naquilo e admirou-se por estar ali, deitada naquela cama, na velha casa das Ingombotas. O que fazia naquele país? Pergunta inútil, que todos os dias a atormentava.
Mas naquele momento tinha um outro sentido: o que fazia ela ali?
Estava lúcida e não sentia nada, nem a amargura dos derrotados, nem a euforia dos vencedores (naquela noite era as duas coisas ao mesmo tempo). “É a noite do louva-a-deus”, pensou. E viu-se a si própria, recém-nascida, com um grande louva-a-deus pousado sobre o peito.
Quando era pequena o velho Jacinto falara-lhe daquilo: “Pouco depois de nasceres, a tua mãe olhou para ti e viu um enorme louva-a-deus pousado sobre o teu peito”. Muito mais tarde, Vavó Fina voltou a recordar-lhe o episódio. Disse-lhe: “A vida vai-te comer”."
(in "Estação das Chuvas", José Eduardo Agualusa, Publicações Dom Quixote)

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